Há momentos no esporte que se tornam imediatamente clássicos. E esses momentos na F1 envolvem grandes corridas ou batalhas épicas e vitórias que transcendem qualquer descrição. Geralmente, a palavra “clássico” carrega uma conotação positiva, mas também pode se referir a momentos que definem uma era, que são preservados para o futuro e a posteridade como uma fotografia de um tempo passado. E esses tempos podem ser obscuros, tristes e repletos de derrotas.
Na maior categoria do automobilismo mundial, alguns acidentes se tornaram clássicos. Em um domingo, há 46 anos, Niki Lauda perdeu o controle de sua Ferrari no GP da Alemanha, em Nürburgring. Seu carro atingiu violentamente a barreira de proteção, transformando-se em uma bola de fogo que resultou em uma história inesquecível.
A temporada de 1976
O ano de 1976 marcou uma importante temporada na Fórmula 1. Niki Lauda começou o ano como o defensor do título, após ter conquistado o campeonato pela Ferrari em 1975. Ele era o favorito incontestável desde o momento em que Emerson Fittipaldi decidiu deixar a McLaren e criar sua própria equipe brasileira no grid, a Copersucar. Embora a decisão de brasileiro tenha sido marcante por si só, ela tirou o bicampeão do lugar onde ele tinha chances reais de competir pelo tri. Sem um piloto imediato para lutar pelo campeonato, a McLaren foi convencida pela patrocinadora, a empresa de cigarros Marlboro, a contratar o inglês James Hunt. E assim foi feito.
Apesar de alguns bons resultados ocasionais, Hunt nunca havia pilotado por uma grande equipe e tinha um estilo de pilotagem indomável tanto dentro como fora das pistas. Era uma incógnita o que ele poderia realizar em um dos assentos mais desejados da Fórmula 1.
Hunt até começou mostrando sua rapidez. Conquistou a pole position nas duas primeiras corridas do ano, mas Lauda venceu ambas, no Brasil e na África do Sul. O companheiro de equipe de Lauda na Ferrari, o suíço Clay Regazzoni, venceu a terceira corrida, o Grande Prêmio do Oeste dos Estados Unidos.
No entanto, o verdadeiro conflito que marcou a entrada de Hunt no campeonato ocorreu no Grande Prêmio da Espanha, em Jarama, a quarta etapa da temporada. Mais uma vez, Hunt conquistou a pole position, mas foi ultrapassado por Lauda na largada, como nas primeiras corridas. No entanto, a Ferrari teve problemas na transmissão e diminuiu o ritmo. James ultrapassou Lauda e conquistou sua primeira vitória oficial do campeonato de 1976 – já que ele havia vencido as duas corridas que não faziam parte oficialmente do Mundial. Lauda terminou em segundo lugar.
No entanto, surgiu um importante problema: as inspeções pós-corrida revelaram que o carro da McLaren estava 1,5 cm mais largo do que o permitido de acordo com as novas regras esportivas recentemente implementadas. Hunt foi desclassificado e a vitória foi dada a Lauda. A McLaren imediatamente apelou para mudar o resultado da corrida, mas, enquanto isso, a Fórmula 1 seguiu para a Bélgica, onde Lauda venceu de ponta a ponta e Hunt abandonou devido a problemas na transmissão. Depois, foi a vez de Mônaco: Lauda venceu mais uma vez e Hunt abandonou novamente, desta vez devido a problemas no motor. No Grande Prêmio da Suécia, a equipe Tyrrell roubou o protagonismo e fez uma dobradinha com seu carro de seis rodas, que apesar de histórico, teve uma vida curta.
Até aquele momento, sete corridas já haviam acontecido e, mesmo que a decisão do Grande Prêmio da Espanha estivesse sub judice, o campeonato ainda não estava realmente acirrado. Lauda estava na liderança com 55 pontos, seguido pelo vice-líder, o sul-africano Jody Scheckter, da Tyrrell, com 23 pontos
Lauda viveu um verdadeiro inferno na Alemanha
O Grande Prêmio da Alemanha marcou a décima etapa do Campeonato Mundial de Fórmula 1. Mesmo após quatro décadas e meia da corrida, é amplamente conhecido que Niki Lauda fez um apelo para que a categoria não corresse naquela pista.
Na pitoresca versão de Nürburgring, entre as montanhas de Eifel, a pista havia se tornado estreita e perigosa para os carros, que se transformaram em verdadeiros monstros de velocidade naquele ponto dos anos 1970.
“Lembro-me de dizer: ‘Os carros estão ficando rápidos demais. Este circuito não pode ser mantido com os padrões atuais. Acho que não devemos correr lá.’ Discutimos sobre isso, e a resposta foi que eles haviam assinado um contrato de três anos com Nürburgring e aquele era o terceiro ano com uma versão modificada da pista. Os pilotos votaram sobre o assunto, e eu perdi porque os outros argumentaram que deveríamos respeitar o acordo de três anos”, disse Lauda anos mais tarde.
No domingo da corrida, James Hunt, mais uma vez pole position, teve uma largada ruim. Clay Regazzoni assumiu a liderança, mas as condições climáticas eram uma preocupação. A chuva que caíra antes da prova deu lugar a uma pista mais seca no momento da largada, resultando em uma corrida frenética para trocar os pneus de chuva por slicks. Lauda foi um dos pilotos que fez a troca. Porém, logo na segunda volta, Lauda perdeu o controle de seu carro, saiu da pista e bateu violentamente contra a barreira de proteção, transformando-se em uma bola de fogo instantânea e retornando à pista.
Não se sabe ao certo o que fez Lauda perder o controle de sua Ferrari, pois o piloto nunca recuperou a memória dos momentos imediatamente anteriores ao acidente. No entanto, há suspeitas de que tenha sido uma quebra na suspensão traseira ou aquaplanagem em uma área ainda molhada da pista.
Após retornar à pista, Lauda foi atingido pela Surtees de Brett Lunger e rodou. Lunger, ileso, juntou-se a outros pilotos, como Harald Ertl e Guy Edwards, na tentativa de resgatar o austríaco do fogo que envolvia sua Ferrari. No entanto, foi Arturo Merzario quem conseguiu tirar Lauda do carro.
“Merzario, o italiano, parou porque eu bloqueei a pista, veio até o meu carro, abriu o meu cinto de segurança e me tirou de lá. Foi incrível”, relatou Lauda.
No entanto, a espuma do capacete de Lauda escorregou para fora da proteção, deixando seu rosto exposto. Mesmo com queimaduras graves, fraturas faciais e a inalação de fumaça tóxica, ele saiu consciente do cockpit e conseguiu andar por conta própria. A situação ainda era crítica.
A corrida foi interrompida e Lauda foi levado de helicóptero diretamente para o hospital Bundeswehr, em Koblenz. Em seguida, foi transferido para a Clínica Traumatológica de Ludwigshafen, especializada em tratamento de queimaduras. Nos dias seguintes, sua vida estava em perigo, tanto que ele chegou a receber a extrema-unção enquanto estava em coma. Seus pulmões e sangue foram prejudicados devido à inalação da fumaça. O fogo queimou a maior parte de sua orelha, cabelo, sobrancelha e cílios do lado direito. Pelo resto de sua vida, ele raramente apareceu em público sem um boné.
Apesar das chances contrárias e do risco de morte iminente, o notável cérebro de Lauda não sofreu danos. Poucos dias depois, o austríaco já estava perguntando à equipe médica quando poderia voltar a correr. A partir daquele momento, seu retorno às pistas era apenas uma questão de tempo.
Em Nürburgring, com praticamente todos os carros reunidos no local do acidente, já que não havia como passar, a direção de prova decidiu que a corrida continuaria. Chris Amon optou por não participar e outros acidentes envolvendo Ronnie Peterson, Patrick Depailler e Vittorio Brambilla foram registrados, mas Hunt partiu para a vitória.
Lauda estava certo: Nürburgring havia se tornado um problema muito grande para a Fórmula 1, pelo menos naquele formato. E não era apenas devido à velocidade dos carros em uma pista tão estreita. Além disso, o tamanho da pista, com voltas de mais de 7 minutos, tornava o resgate uma tarefa extremamente dramática. Se não fosse pela ajuda voluntária de outros pilotos, Lauda provavelmente não teria sido resgatado com vida pela equipe de segurança, devido à demora em alcançar aquele ponto do circuito.
O fim da temporada de 1976
O desfecho da história era claro: Hunt havia encontrado seu ritmo e a McLaren fez melhorias significativas em seu carro. O desafeto Lauda estava fora de combate e, como resultado, Hunt se tornou o favorito ao título mundial. Depois de vencer na Alemanha, ele terminou em quinto lugar na corrida disputada na casa de seu rival, o Grande Prêmio da Áustria, onde mais uma vez desperdiçou uma pole position – John Watson venceu pela Penske.
A Ferrari, sem Lauda e indignada com a decisão de devolver a vitória para Hunt na Espanha – pressionando também pela desclassificação de James na Inglaterra -, optou por ficar de fora do evento austríaco.
No entanto, Lauda não tinha tempo a perder, pois Hunt estava se aproximando perigosamente na classificação. Quando o inglês venceu na Holanda e ficou a apenas três pontos de distância, o retorno às pistas foi adiantado.
Em 10 de setembro de 1976, exatamente 41 dias após o acidente que quase lhe custou a vida, Andreas Nikolaus Lauda vestiu seu macacão e capacete, apesar de seu rosto ainda estar cheio de queimaduras, para voltar ao trabalho. Ele participou dos treinos livres na sexta-feira, classificou-se melhor que Hunt no sábado e ainda ganhou um bônus: seu rival foi desclassificado da sessão de classificação devido a uma irregularidade no combustível.
Lauda terminou em quarto lugar no Grande Prêmio da Itália, enquanto Hunt rodou sozinho e abandonou a corrida. Foi uma grande vitória que, além do campeonato, carregava um elemento adicional: a rivalidade com o chefe de equipe Daniele Audetto, que assumiu o cargo naquela temporada, após a promoção de Luca di Montezemolo na Fiat. Audetto chegou a convidar Emerson Fittipaldi para substituir o ainda convalescente Lauda e contratou o argentino Carlos Reutemann, que havia deixado a Brabham após um início de temporada difícil. O argentino competiu em um terceiro carro na Itália, mas ficou de fora do restante da temporada.
Com o retorno de Lauda na Itália e a desclassificação de James na Inglaterra confirmada, o Grande Prêmio do Canadá poderia encerrar o Campeonato a favor do atual campeão. No entanto, a McLaren estava em ascensão e Lauda ainda estava debilitado. Hunt fez bem o trabalho, conquistando a pole position e a vitória. Ele continuou vencendo nos Estados Unidos, reduzindo a desvantagem para apenas três pontos.
Chegou então o Grande Prêmio do Japão, em Fuji, com um verdadeiro dilúvio que dificultava a realização da corrida. Nessa situação, os pilotos votaram se deveriam ou não competir. Lauda era contra, mas, assim como em Nürburgring, seu voto foi vencido. No entanto, Alastair Caldwell, chefe da McLaren em 1976, deu uma versão diferente da história no documentário “When Playboys Ruled the World”, de 2010.
“Estava chovendo intensamente, e James estava no comitê de segurança da Associação de Pilotos. Eles estavam argumentando a favor de não realizar a corrida, enquanto eu, é claro, estava defendendo que a corrida acontecesse, pois só poderíamos ganhar o campeonato se competíssemos”, afirmou.
E assim, eles partiram. Encarar aquela cortina de chuva era demais depois de tudo o que Lauda havia passado em 1976. Ao final da primeira volta, ele levou o carro aos boxes, estacionou e saiu do cockpit. Para ele, era o fim do campeonato. Sua vida não terminaria em Fuji 1976 em uma corrida que, segundo acreditava, nem deveria ter acontecido. Larry Perkins, José Carlos Pace e Emerson Fittipaldi também abandonaram nas primeiras dez voltas, concordando com a decisão de não competir.
“A decisão não foi difícil, porque o circuito estava completamente encharcado. Havia tanta água que ninguém conseguia guiar. Foi totalmente absurdo. Outros pilotos também não quiseram correr. James foi campeão sem problemas. Quando você não foi afetado por um acidente, o risco que você está disposto a assumir é maior do que no meu caso, que tinha acabado de escapar da morte”, declarou muito tempo depois.
Foi uma corrida dramática, pois Hunt perdeu posições à medida que a chuva parava e a pista secava. Ele teve que fazer uma parada nos boxes com um pneu furado a apenas dez voltas do fim, mas ainda conseguiu ultrapassar Alan Jones e Clay Regazzoni para terminar em terceiro lugar e se tornar campeão mundial.
“Lamento muito por Niki, lamento muito por todos que correram nessas circunstâncias ridículas. As condições estavam perigosas e eu respeito completamente a decisão de Niki. Depois de tudo que ele enfrentou, o que mais poderia fazer? Eu senti que merecia vencer o campeonato. Também senti que Niki merecia vencer e gostaria que pudéssemos dividir o título”, disse Hunt ao final da corrida.
“Se alguém mais deveria ter ganhado aquele campeonato, fico feliz que tenha sido James. Eu gostava dele. Podíamos não ser íntimos, mas éramos amigos. Cuidávamos um do outro de uma maneira muito especial. Era de coração”, disse Lauda nos anos 2000.
Lauda voltou a ser campeão
Niki, é claro, voltou a ser campeão pela Ferrari em 1977 e conquistou o tricampeonato pela McLaren em 1984, após retornar da sua primeira aposentadoria. No entanto, os problemas causados pelo acidente jamais desapareceram completamente. Danos decorrentes da inalação da fumaça tóxica do incêndio em Nürburgring resultaram em dois transplantes de rins – em 1997 e 2005 – e um transplante de pulmão em 2018. Após a última cirurgia, Lauda se retirou da vida pública de uma vez por todas e faleceu cerca de um ano depois, em maio de 2019, aos 70 anos.
Seus últimos anos na Fórmula 1 foram como presidente não-executivo da Mercedes, desempenhando um papel importante na contratação de Lewis Hamilton no final de 2012 e lidando com os pilotos ao longo da ascensão do domínio da equipe alemã.
No filme “Rush – No Limite da Emoção”, que contou a história de 1976 para uma nova geração, o duelo entre personalidades e a luta por um campeonato repleto de reviravoltas ganhou o merecido destaque em uma narrativa hollywoodiana. No entanto, o que tornou o campeonato de 1976 épico, além de tudo isso, foi o que aconteceu há 46 anos. Foi o dia em que Niki Lauda desafiou o destino.